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- 12/04/22

Composição da conta de energia na geração distribuída e a inconstitucionalidade da cobrança do ICMS

Fonte: Portal Migalhas

Gero minha própria energia e ainda preciso pagar imposto? Porque é indevida a incidência de ICMS sobre as tarifas TUSD/TUST nos casos de geração distribuída.

Com os sucessivos aumentos na conta de luz, os consumidores – pessoas física e jurídica – buscam alternativas para diminuir suas despesas. Por isso, muitos passaram a investir na geração distribuída, termo designado à geração própria de energia elétrica, sendo a mais popular atualmente a que provém da instalação de placas solares, cujo retorno ocorre em até 5 anos do início de seu uso, como apontam estudos1.

Só para o ano de 2022, a associação do setor estima um crescimento de mais de 91,7% sobre a capacidade atual instalada no país. No entanto, aqueles que já pesquisaram sobre as vantagens do uso desta modalidade e os que já se utilizam, notaram que ainda recebem mensalmente cobrança da concessionária de energia élétrica, reguladas pela ANEEL – Agência Nacional de Energia Elétrica.

Daí vem o questionamento do porquê de o “prossumidor” (aquele consumidor que produz)2 não ter sua conta zerada. Para entender a questão, vamos recorrer às normas que regem a modalidade.

A ANEEL, por meio da resolução normativa 482/12, criou o sistema de compensação de energia elétrica, autorizando os consumidores a gerarem sua própria energia, como forma de incentivo a esta prática.

Isto acontece da seguinte maneira: o consumidor, através da instalação de pequenas usinas e pequenos geradores se utilizam da energia produzida e o excedente se transforma em “créditos de energia”, que serão medidos em quilowatts-hora e cedidos para a distribuidora e depois compensados, com validade de até 60 meses, como estipulou a ANEEL.

Para aqueles que já possuem instalações de geração de energia, em grandeza suficiente para consumo próprio, a conta recebida deveria vir zerada, certo? Não. Mesmo que a geração própria seja superior à consumida por uma unidade, a conta de energia emitida pela concessionária nunca será zerada.

Isto porque, ela é composta dos seguintes valores, para os casos de geração distribuída:

  • Taxa mínima uso [3]: que segue as regras da resolução normativa 414 de 2010 da ANEEL, variando de acordo com o padrão de conexão de cada consumidor – monofásico, bifásico e trifásico;
  • CIP ou Cosip – Contribuição de Iluminação Pública:que tem por finalidade o financiamento da iluminação coletiva e está prevista no art. 149-A da Constituição, inserido pela EC 39/02;
  • TUSD – Tarifa de Utilização de Serviços de Distribuição e TUST – Tarifa de Utilização de Serviços de Transmissão: tanto a TUSD quanto a TUST se referem ao sistema de entrega de energia elétrica aos consumidores, uma vez que compõem a rede de instalações, transformadores, postes e outros componentes. No caso da geração distribuída, na forma da legislação atual, é realizada uma compensação da energia consumida e a energia gerada, sendo o saldo  transformado em crédito. Assim, o saldo remanescente transformado em crédito vem discriminado na conta como “energia ativa injetada”;
  • ICMS sobre a TUSD/TUST: ponto central do presente artigo.

Por outro lado, aqueles que não pretendem investir em geração distribuída até o início do próximo ano estarão sujeitos às regras de transição, que impactarão no sistema de créditos mencionado. Sobre o saldo de energia produzida não utilizado pelo consumidor, será descontado um percentual para custear a infraestrutura (TUSD).

Pois bem, feitos estes esclarecimentos, vamos ao ponto: a polêmica acerca da TUSD/TUST compor a base de cálculo do ICMS não é recente. Não é por outro motivo que ainda está pendente de julgamento pelo Superior Tribunal de Justiça o tema 986, no âmbito do qual o STJ deve decidir de forma sobre o tema. Até o momento a jurisprudência é favorável ao contribuinte, sob o argumento de que o imposto estadual deve ser cobrado sobre o valor da operação de circulação da mercadoria – neste caso a energia elétrica, e não sobre as tarifas cobradas nas fases anteriores.

Ocorre que, no caso ora tratado sequer estamos falando sobre energia disponibilizada pela distribuidora, mas da energia gerada pelo próprio consumidor. Ou seja, não há aqui qualquer circulação de mercadoria, nem operação de compra e venda. A pessoa, física ou jurídica, que gera sua própria energia o faz como forma de planejamento financeiro e não dependência de terceiros.

Importante mencionar que o convênio ICMS 16/15 do CONFAZ autorizou os estados a concederem isenção de ICMS na energia compensada pelo consumidor, desde que o seu sistema de geração distribuída seja de até 1MW. Mas a realidade é que estamos diante de evidente não incidência do imposto, de modo que não espaço para concessão de isenção.

Ocorre que, ainda que fosse possível conceder isenção, alguns estados4 entendem que ela não abrangeria a TUSD e a TUST. Note-se, curiosamente, que nos casos de energia distribuída sequer se fala em cobrança da terceira tarifa que compõe a conta de energia elétrica TE – Tarifa de Consumo de Energia, de modo que a interpretação destes estados claramente tornaria o convênio inócuo.

Pois bem. Como a própria ANEEL definiu na resolução de 2012, o sistema de compensação de energia elétrica é baseado no “empréstimo gratuito da energia gerada pelo consumidor à distribuidora”. E não há o que se falar em hipótese de incidência do ICMS quando não estiverem presentes os seus elementos materiais constitucionalmente definidos: (i) mercadoria, (ii) operação e (iii) circulação.

Primeiro, porque a energia elétrica gerada não pode ser tratada como mercadoria, uma vez que é um excedente emprestado5 pelo prossumidor à companhia distribuidora de energia elétrica e não um bem comercializado de maneira habitual e objeto principal da empresa.

Segundo, porque o micro ou minigerador tem como objetivo utilizar a energia produzida por ele. Por consequência, não há que se falar em operação, uma vez que não ocorre venda do excedente injetado na rede de distribuição, mas sim um empréstimo gratuito.

Terceiro, porque, com relação à circulação, o STJ, já corroborado pelo STF (tema 1099), consolidaram o entendimento de que o simples deslocamento de mercadoria de um estabelecimento para outro do mesmo contribuinte não constitui fato gerador do ICMS (súmula 166). Assim, embora ocorra a circulação física da mercadoria, não há que se falar em circulação jurídica. Frise-se que toda a energia excedente estará disponível como crédito para que o mesmo contribuinte se utilize dela, como determina a citada resolução da ANEEL.

Assim, nota-se que, com razão, o debate sobre a ilegalidade da cobrança do ICMS sobre a TUSD/TUST na geração distribuída vem crescendo nas cortes do país, sobretudo, na justiça estadual do Mato Grosso, cuja base econômica é o agronegócio . Em agosto de 2021, Cuiabá foi apontado pela ABSOLAR  – Associação Brasileira de Energia Solar e Fotovoltaica como o município com o maior consumo de energia solar do Brasil.

Já em fevereiro deste ano, o TJ/MT suspendeu a cobrança do ICMS sobre a energia destinada ao autoconsumo, no julgamento de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Partido Verde (ADIn 1018481-79.2021.8.11.0000). Veja-se:

A relatora do processo, desembargadora Maria Aparecida Ribeiro, entendeu a cobrança como inconstitucional já que o consumo de energia produzida no âmbito do sistema de compensação de energia e elétrica (microgeração e minigeração de energia distribuída – energia solar) não tem objetivo de comercialização e sim para autoconsumo.

No caso da energia elétrica produzida pela unidade consumidora com micro ou minigeração, embora haja circulação física da mercadoria quando a produção excedente (que não pode ser estocada) é injetada na rede da distribuidora local, nada indica que haja circulação jurídica propriamente dita. Isso porque a energia elétrica injetada não deixa o patrimônio jurídico do produtor/consumidor: ela é meramente emprestada, a título gratuito, à distribuidora, gerando um crédito que pode ser utilizado em até sessenta meses por meio do sistema de compensação previsto na resolução ANEEL nº 482/12″, explica a magistrada em seu voto.6

Em outras decisões encontradas, fundamentos como este vêm embasando as decisões, que têm sido favoráveis aos prossumidores:

“Não deve incidir ICMS sobre TUSD referente ao sistema de compensação de energia solar, pois trata-se de operação em que não houve a comercialização de energia, não ocorrendo o fato gerador do tributo estadual”. (AI 10183994820218110000 de 08/03/2022).

Está nítida, portanto, a inconstitucionalidade da cobrança do ICMS sobre as tarifas na geração distribuída, vez que não representam a materialização do fato gerador do ICMS, estando ausentes todos os elementos constitucionalmente postos, definidores da hipótese de incidência deste tributo. E esta discussão é relevantíssima, especialmente no atual contexto de busca de economia e incentivo à geração de energia de fontes sustentáveis, como usualmente é o caso do mini e microgerador.

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1 https://canalsolar.com.br/em-quanto-tempo-o-sistema-solar-retorna-o-investimento/#:~:text=Tipicamente%20o%20payback%20%E2%80%93%20tempo%20de,recupera%20todo%20o%20valor%20investido; https://solstar.com.br/2021/07/22/retorno-do-investimento-em-energia-solar/

2 Prosumer, no original em inglês, é uma combinação das palavras producer e consumer (produtor e consumidor, respectivamente). Prossumidor, portanto, é o consumidor que produz. https://negociossc.com.br/blog/prossumidor-o-significado-do-consumidor-moderno-para-o-marketing/

3 Em contas de luz em que não há geração distribuída envolvida, a “taxa mínima” é substituída pela “TE – Tarifa de Energia”, que é o valor consumido mensalmente em R$/MWh.

4 Atualmente, possuem tal entendimento os Estados de SP, RJ, SC, RS, PR, GO, SE e PE

5 Art. 1º, XIV da Lei nº 14.300, de 6 de JANEIRO de 2022 – Sistema de Compensação de Energia Elétrica (SCEE): sistema no qual a energia ativa é injetada por unidade consumidora com microgeração ou minigeração distribuída na rede da distribuidora local, cedida a título de empréstimo gratuito e posteriormente compensada com o consumo de energia elétrica ativa ou contabilizada como crédito de energia de unidades consumidoras participantes do sistema; e Art. 2º, III da RN 482 da ANEEL – sistema  de  compensação  de  energia  elétrica: sistema no qual a energia ativa injetada por unidade consumidora com microgeração ou minigeração distribuída é cedida, por meio de empréstimo gratuito, à distribuidora local e posteriormente compensada com o consumo de energia elétrica ativa.

6 http://www.tjmt.jus.br/noticias/66808#.Yk8ra8jMKUk