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- 12/02/20

DIRETO DO CARF – “Crédito” para fins de determinação do critério temporal do IRRF

Fonte: Conjur

Nesta semana, analisaremos os precedentes do Carf relativos ao conteúdo do termo “crédito”, que é um dos critérios para determinação da ocorrência do fato gerador do Imposto de Renda Retido na Fonte.

Antes de adentramos no tema, não podemos deixar de prestar uma homenagem ao professor Gerd Willi Rothmann, de quem tivemos a honra de ser alunos e que foi um dos pioneiros no Brasil nos estudos do Direito Tributário Internacional.

Além da atuação como professor associado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, onde obteve os títulos de bacharel em Direito, doutor e livre-docente em Direito Tributário, foi fundador do Instituto Brasileiro de Direito Tributário, tendo deixado como legado, dentre tantas obras, as teses: “Interpretação e Aplicação dos Acordos Internacionais contra a Bitributação” (tese de doutorado) e “Inconstitucionalidade Múltipla na Tributação da Importação de Serviços” (tese de livre-docência).

No que tange especificamente às justificativas para a tributação pelos Estados da fonte ou da residência, Gerd Rothmann assinalava que “a ‘luta’ pela distribuição de competências tributárias entre os Estados soberanos envolve também uma ‘luta’ de princípios de tributação: princípio do domicílio e princípio da capacidade contributiva versus princípio da fonte e princípio do benefício!”[1].

Nesse sentido, ganha importância o aspecto temporal do imposto de renda, para que se viabilize a tomada de crédito, mitigando a dupla tributação internacional. Especificamente em relação ao fato gerador do IRRF, cumpre notar que o critério temporal de um tributo diz respeito ao momento em que este se considera exigível. No caso do IRRF incidente sobre rendimentos de não-residentes no Brasil, a legislação elenca cinco momentos possíveis: pagamento, crédito, entrega, emprego ou remessa.

Tais eventos, conquanto utilizados na legislação para fixar o momento em que a retenção se torna devida pela fonte pagadora, refletem, na verdade, a ocorrência do próprio fato gerador do IRRF, genericamente definido no artigo 43 do CTN como sendo a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica de renda e de proventos de qualquer natureza.

A doutrina majoritária brasileira entende que a disponibilidade jurídica consiste no título jurídico que legitima o contribuinte a perceber certo rendimento (regime de competência), enquanto a disponibilidade econômica vem a ser esse mesmo título acrescido da percepção efetiva do rendimento (regime de caixa). A disponibilidade econômica, portanto, pressupõe a disponibilidade jurídica da renda[2].

Não nos parece fazer sentido pensar que aqueles cinco eventos — pagamento, crédito, entrega, emprego ou remessa — possam estar dissociados uns dos outros ou que eles se refiram a diferentes momentos da realização da renda. Na verdade, são visões harmônicas e complementares que ajudam a compreender um mesmo fenômeno (disponibilidade econômica) e não um conjunto de definições sobre diferentes fenômenos (disponibilidade jurídica e disponibilidade econômica). Se assim fosse, o “crédito” precederia os demais, por supostamente representar a disponibilidade jurídica da renda.

Aliás, a controvérsia sob exame diz respeito à abrangência do conceito de “crédito” como evento apto a desencadear o nascimento das obrigações tributárias relativas ao IRRF[3].

Diversas são as acepções possíveis para determinação do momento em que se torna devido o IRRF. Seria o mero crédito contábil da obrigação no passivo da fonte pagadora? Ou talvez a data de vencimento dessa dívida? Ou o crédito do valor em conta bancária do beneficiário? Ou talvez se refira a algum ato de disponibilidade do valor da renda pela fonte em favor do beneficiário, que represente o adimplemento da obrigação e seja equivalente ao pagamento?

Por muito tempo, a Receita Federal do Brasil (RFB) vinha se manifestando no sentido de que o simples crédito contábil da despesa referente, por exemplo, à importação de serviço seria suficiente para caracterizar a ocorrência do fato gerador do IRRF, ainda que, na espécie, não houvesse pagamento. Nessa linha, era possível observar tanto a Solução de Divergência Cosit nº 26/2013 quanto o Ato Declaratório Interpretativo RFB nº 8/2014, cuja redação é a seguinte:

Art. 1º Considera-se ocorrido o fato gerador do imposto sobre a renda na fonte, no caso de importâncias creditadasna data do lançamento contábil efetuado por pessoa jurídica, nominal ao fornecedor do serviço, a débito de despesas em contrapartida com o crédito de conta do passivo, à vista da nota fiscal ou fatura emitida pela contratada e aceita pela contratante.

Art. 2º A retenção do imposto sobre a renda na fonte, incidente sobre as importâncias creditadas por pessoa jurídica a outra pessoa jurídica pela prestação de serviços caracterizadamente de natureza profissional, será efetuada na data da contabilização do valor dos serviços prestados, considerando-se a partir dessa data o prazo para o recolhimento.”

Posteriormente, a RFB pareceu ter flexibilizado esse entendimento. Por meio da Solução de Consulta Cosit nº 153/17, entendeu que o crédito contábil, de fato, configura o fato gerador dos tributos em análise, mas “desde que caracterizada a disponibilidade econômica ou jurídica do rendimento” ou “desde que observados a efetiva prestação dos serviços e os prazos contratuais”. Nesse sentido, a conclusão do serviço e o vencimento da obrigação apresentam-se como importantes elementos para caracterização dessa condição.

Mais recentemente, ao tratar de um assunto correlato na Solução de Consulta Cosit nº 307/19 (momento do registro na DIRF dos dividendos pagos ou creditados aos sócios) — mas cuja conclusão nos afigura de aplicação extensiva ao caso do IRRF ora examinado — a RFB interpretou a acepção de “crédito” conforme o regime de reconhecimento de receitas do beneficiário: (a) se pessoa jurídica, vale o regime de competência (crédito contábil); (b) se pessoa física, vale o regime de caixa (pagamento, sendo “crédito” o depósito em conta bancária), conforme o trecho abaixo:

“12. Segundo relata a consulente, ela realiza o crédito contábil dos lucros aos sócios (“creditando esse valor em sua conta-corrente nominal no passivo circulante”), mas não efetiva o pagamento integral desses lucros no mês em que é realizado o crédito, questionando se deve registrar na Dirf o valor creditado ou o valor efetivamente pago.

(…)

17. Assim, nas hipóteses de incidência do Imposto sobre a Renda na fonte em relação a rendimentos auferidos por pessoas jurídicas, tal como demonstra sabê-lo a consulente, o termo crédito significa o crédito contábil, efetuado por pessoa jurídica, em conta do passivo, nominal ao beneficiário – orientação já consignada no Ato Declaratório Interpretativo RFB nº 8, de 2 de setembro de 2014, e, ainda, na Solução de Divergência Cosit nº 26, de 31 de outubro de 2013, e nas Soluções de Consulta Cosit nº 161, de 24 de junho de 2014, e nº 153, de 2 de março de 2017.

(…)

19. Por conseguinte, no que se refere à incidência na fonte do Imposto sobre a Renda relativamente aos rendimentos auferidos pelas pessoas físicas, o vocábulo crédito há de ser entendido como crédito em conta bancária, segundo o disposto no parágrafo único do art. 34 do RIR/2018, e no § 3º do art. 3º da Instrução Normativa RFB nº 1.500, de 2014

Feitas as principais considerações sobre o cenário legal e normativo aplicável, passamos à análise dos precedentes da jurisprudência administrativa federal.

À época do antigo Conselho de Contribuintes (período anterior à 2009), o entendimento dominante[4] já refutava a acepção do mero crédito contábil da provisão de serviços a pagar como sendo o evento suficiente e necessário à exigência do IRRF. Diziam aqueles precedentes que a existência de disponibilidade jurídica ou econômica da renda somente se daria após o vencimento da obrigação, quando a obrigação decorrente da prestação de serviços passaria a ser exigível pelo credor. Vejamos:

“IMPOSTO DE RENDA RETIDO NA FONTE — REGISTRO CONTÁBIL DE DESPESA – REGIME DE COMPETÊNCIA — DISPONIBILIDADE ECONÔMICA OU JURÍDICA DA RENDA — INOCORRÊNCIA

O simples crédito contábil, antes da data aprazada para seu pagamento, não extingue a obrigação nem antecipa a sua exigibilidade pelo credor, não se configurando, portanto, o fato gerador do Imposto de Renda.” (acórdão 104-23.000, de 24.01.2008)

Tal compreensão a respeito do “crédito” tem igualmente perdurado nos precedentes do Carf, o que pode ser observado nos Acórdãos 2202-002.535 (20/11/13), 2101-003.166 (05/11/14), 2102-003.278 (10/03/15), 2202-003.029 (11/03/15), 2401-005.015 (09/08/17), 2201-004.774 (07/11/18).

Tal posicionamento encontra-se consolidado no Acórdão nº 9202-003.120 (26/03/14), proferido pela 2ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF):

“IMPOSTO DE RENDA RETIDO NA FONTE. REMESSAS PARA O EXTERIOR. IMPOSTO CALCULADO TENDO COMO DATA DO FATO GERADOR A DATA DOS CRÉDITOS CONTÁBEIS. IMPOSSIBILIDADE.

A hipótese de incidência exige que as importâncias sejam pagas, creditadas, entregues, empregadas ou remetidas a beneficiários domiciliados no exterior, por fonte situada no País.

As dicções “pagas”, “creditadas”, “entregues”, “empregadas” ou “remetidas” não deixam dúvidas de que o beneficiário não-residente tem que ter tido a aquisição de disponibilidade jurídica ou econômica do rendimento, conforme disciplina contida no artigo 43 do CTN.

“A disponibilidade econômica decorre do recebimento do valor que se vem a acrescentar ao patrimônio do contribuinte. Já a disponibilidade jurídica decorre do simples crédito desse valor, do qual o contribuinte passa a juridicamente dispor, embora este não lhe esteja ainda nas mãos.” (Hugo de Brito Machado. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Malheiros Editores, 2000, p. 243).

Não há fato gerador do imposto incidente na fonte quando as importâncias são contabilmente creditados ao beneficiário do rendimento em data anterior ao vencimento da obrigação, consoante os prazos ajustados em contrato. O simples crédito contábil, antes da data aprazada para seu pagamento, não extingue a obrigação nem antecipa a sua exigibilidade pelo credor. O fato gerador do imposto de renda na fonte, pelo crédito dos rendimentos, relaciona-se, necessariamente, com a aquisição da respectiva disponibilidade econômica ou jurídica.

Por si só, o fato de a fonte pagadora lançar contabilmente o acréscimo do valor de sua obrigação na respectiva conta de passivo não torna devido o imposto de renda na fonte, por não importar na aquisição de qualquer disponibilidade econômica ou jurídica de renda pelo beneficiário.

No caso dos autos, os rendimentos só passaram a ser devidos quando do vencimento previsto no contrato. Ora, por dedução lógica, o simples registro contábil, nos períodos questionados, não tem, por si só, o condão de modificar o prazo de vencimento da obrigação contratual.” (acórdão nº 9202-003.120, de 26/03/2014)

Em suma, os posicionamentos consolidados, até o momento, tanto pelas autoridades fiscais quanto pela jurisprudência administrativa dominante demonstram a rejeição da acepção do mero crédito contábil, desapegado do ato de aquisição da disponibilidade jurídica ou econômica da renda, como evento validamente apto a gerar o nascimento da obrigação tributária do IRRF. Já se reconhece, portanto, o que não é “crédito” para tal finalidade (alcance negativo), compreensão até aqui suficiente para solucionar alguns litígios.

Mas o que é “crédito” (alcance positivo), então?

De acordo com a fundamentação do Acórdão nº 9202-003.120, “crédito” representa a disponibilidade jurídica da renda, ao passo que os eventos “pagamento”, “entrega”, “emprego” e “remessa” representam a disponibilidade econômica.

Nessa toada, a disponibilidade jurídica do “crédito” ocorreria a partir do vencimento da dívida, momento em que o beneficiário passaria a deter o direito de exigir do devedor o respectivo adimplemento da obrigação.

Vê-se, diante das possíveis compreensões mencionadas ao longo do texto sobre o alcance positivo do termo “crédito” na doutrina, na jurisprudência e nas manifestações das autoridades fiscais, que apenas um capítulo da controvérsia (alcance negativo) foi resolvido.

*Este texto não reflete a posição institucional do Carf, mas, sim, uma análise dos seus precedentes publicados no site do órgão, em estudo descritivo, de caráter informativo, promovido pelos seus colunistas.

[1] ROTHMANN, Gerd Willi. Inconstitucionalidade Múltipla na Tributação da Importação de Serviços: réquiem ou catarse do sistema tributário nacional? São Paulo: IBDT, 2019. p. 98.

[2] Merecendo destaque as posições de importantes juristas, como Rubens Gomes de Sousa, Henry Tilbery e Bulhões Pedreira.

[3] Por oportuno, vale lembrar que o tema passou a influenciar também o momento em que a CIDE/Royaties e o PIS/Cofins-Importação são devidos.

[4] Acórdão 106-14.497, de 16.03.2005; acórdão 104-21.549, de 27.04.2006; acórdão 104-23.000, de 24.01.2008; acórdão nº 106-17.142 de 05.11.2008.

Alexandre Evaristo Pinto é conselheiro titular da 1ª Seção do Carf, ex-conselheiro titular da 2ª Seção do Carf, doutorando em Direito Econômico, Financeiro e Tributário pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Direito Comercial pela USP e bacharel em Direito pelo Mackenzie e em Contabilidade pela USP. Professor do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) e coordenador do MBA IFRS da Fipecafi.

Fábio Piovesan Bozza é advogado, ex-conselheiro titular da 2ª Seção do Carf, mestre em Direito Econômico, Financeiro e Tributário pela Universidade de São Paulo (USP) e professor de cursos de pós-graduação.